Como é que alguém tem o despeito e o atrevimento de igualar o professor a um frentista? Como?
Realmente, o título é provocativo, e pode causar reações negativas. Contudo, permita-se investir algum tempo para seguir o curso do pensamento que construímos abaixo, para perceber um aspecto muito importante na relação entre estes dois importantes profissionais.
Todo aquele que escreve, escreve geralmente sobre o que vê e daquilo que percebe, ou sobre ‘’fatos e coisas’’ como resume Olavo de Carvalho; e todo aquele que fala, obviamente também se manifesta sobre a sua realidade, presente ou pretérita, defendendo um ponto de vista particular visando situações para o futuro. Assim, e nas linhas abaixo, nos manifestaremos utilizando a pandemia como um pontapé ao que sugere o título, hoje considerado o principal assunto do Brasil e talvez do mundo e, na sequência deste jogo, dispersaremos as ideias na mesa deste artigo, até chegar ao tema que nos propomos apresentar, acima descrito.
Vamos lá.
Enquanto educadores que somos, e estando com as aulas presencias canceladas, é muito estranho adentrar todos os dias em um prédio onde se encontra uma instituição de ensino, mesmo que, por dever de ofício, temos de estar nela para mantê-la em funcionamento. Vê-la, tocá-la, cheirá-la, ouvi-la, e senti-la inerte, silenciosa, sem aqueles cheiros característicos de uma variedade de aromas juvenis, tocando e vendo apenas as paredes frias é anormal, estranho! Parece-nos, e perdoem-nos a sinceridade, um castelo mal assombrado, porque as vozes daqueles poucos que por aqui ainda estão trabalhando, evocam em nosso pensamento continuamente, lembranças queridas de um passado recente onde, hoje não mais, aquelas tantas alegrias acontecem; ao silêncio pandêmico sem aulas vem à mente, e com muita frequência, aqueles sons das cadeiras e mesas arrastadas no piso dos andares superiores; o limo do pátio, lá onde o sol não bate, está bem visível, sem falar do inço que cresce teimosamente entre as ranhuras do piso; três grandes prédios, um enorme pátio, uma linda cancha aberta, tudo vazio, vazio, vazio, receptáculo para todo tipo de pensamentos sombrios e depressivos: é verdade! Os sons da campainha de algumas empresas, ao longe, vem à memória da falta do sinal de troca dos vários períodos de aula por dia, um triste aviso que talvez os alunos possam não retornar mais; as teias de aranha no teto agora estão se multiplicando; a ferrugem das dobradiças de algumas portas, quando abertas, trazem lúgebres rangidos, que antes não haviam; e a voz do professor, soberana, agora retumba imperturbável em nossas reminiscências, muito mais nos momentos em que tudo está quieto, parado, ausente de qualquer movimento. E de noite, ou mesmo quando chove, que clima, que umidade mais fria!
Mas graças a tecnologia – e aqueles que tem alguns 30 anos ou mais podem imaginar a complicação que seria uma paralização, se acontecesse alguns anos atrás, sem a maravilhosa ferramenta, que é a tecnologia da informação – as aulas continuam entre professores e alunos nas instituições que conseguiram se adequar. Todavia, e bem sabe-se disto, todo o espectro do processo educacional está incompleto, porque não há como pretender uma qualidade educacional permanente estando ausente o professor, bem como de seus recursos e técnicas para poder explicar o conhecimento ao aluno, e logicamente afastado daquele local da ideal para aprender, bem como da comunidade de aprendizes. Por isso, atualmente as aulas virtuais servem tão somente como um paliativo enquanto durar a pandemia. Comenius explica melhor: ‘’se um pai de família não cuida ele mesmo de tudo o que é necessário à administração doméstica, mas confia em vários colaboradores, porque também não deve fazer também neste caso? Quando precisa de farinha, vai ao moleiro, de bebidas, ao taberneiro; de carne, ao magarefe; os pais raramente estão em condições de educar os seus filhos com proveito e raramente tem tempo para isso; seria mais útil instruir a juventude em grupos mais numerosos, porque maior é o fruto do trabalho e maior é a alegria quando uns tem o exemplo e o estímulo dos outros; e serve-nos o exemplo da natureza a mostrar-nos que as coisas, para crescerem em abundância, devem ser geradas em local determinado: as árvores nos bosques, os peixes na água e os metais nas entranhas da terra nascem em grande quantidade (*).
Neste contexto de afastamento presencial entre alunos e professores, e também do ambiente educacional onde a educação acontecia, iniciado em março de 2020 até a data de publicação deste artigo, se consegue realmente perceber a importância do professor na sustentação do projeto educacional, em especial das instituições de ensino. E dizemos por que. Bem sabe-se que, quando o esteio de uma família falece, podendo ser o pai ou a mãe ou quando existe a separação entre marido e mulher, de imediato dá início uma desorganização (falamos genericamente) daquele meio, atingindo frontalmente os seus dependentes, e na maioria dos casos, os filhos. E todos nós temos casos a apresentar. Uma semelhante condição, e muito próxima deste caso, acontece também nas organizações de trabalho, ou mesmo também naquelas de interação social, tipo um CTG, uma associação. Nestas organizações, e um pouco diferente daquelas familiares, se encontram várias pessoas que realizam tarefas de toda a ordem, mas entre todas, invariavelmente existe um que realiza uma tarefa especial, central daquele meio, sendo ela, portanto, o principal agente, um cargo imprescindível que, quando de sua ausência, coloca em risco a manutenção da empresa, caso deixar de haver uma rápida substituição. Os exemplos são vários sobre estes profissionais: numa padaria, é o padeiro que é o mais importante; numa empresa de ônibus, o motorista; em uma farmácia, o farmacêutico; numa borracharia, o borracheiro; e num posto de gasolina, o frentista.
O professor é o frentista. Analisemos, pois, a função de um honrado frentista, para compreender no que é possível igualar ao professor. Faça chuva, umidade, sol torrando, vento trazendo pó ou frio, lá ele se encontra, realizando o básico (abastecer os veículos, limpar o para-brisa, revisar o óleo, filtros, radiador, operar softwares, etc). O importante, porém, para este texto, não se encontra no elementar, no hardware, mas no software de sua função, e veja quão dignas são as ações que deve executar: realizar com perfeição o seu serviço; ouvir com paciência e responder gentilmente; conversar de forma educada; esclarecer dúvidas; oferecer informação e dar orientações; atender rápida e dinamicamente; estar alegre e disposto ao trabalho; apresentar-se com boa aparência; ter humildade; agradecer a preferência e solicitar que ‘’volte sempre’’, entre tantas outras ações e deveres.
O professor é o frentista. Qual destas atribuições acima o bom professor deixaria de realizar? Antoine de Saint-Exupéry, mais conhecido pelo ‘’O Pequeno Príncipe’’, num dia inspirado, conseguiu resumir o que o professor-frentista seja em sua ação, ‘’tu não és para mim senão uma pessoa inteiramente igual a cem mil outras pessoas. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens necessidade de mim. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim o único no mundo. E eu serei para ti a única no mundo’’. Portanto, cativar significa sucessivamente prender e, logo em seguida, reter, ações tão somente iguais ao do nosso frentista frente a sua clientela. Quanto de paciência deve ter um professor para ouvir, responder e esclarecer dúvidas, quanta informação deve oferecer para que o aluno consiga construir nele uma ideia de entendimento, por acaso o verdadeiro professor trabalha monótona e mecanicamente, adentrar em sala de aula sempre disposto e vestido com a roupa que reflete o seu humor não melhora o dia, sabiamente resignar-se para ensinar mais esta importante lição não seria também importante, agradecer a presença dos alunos ao entrar em sala de aula, bem como, ao final dela, perguntar se voltarão, são todas elas questões profundamente relacionadas à expressão ‘’cativar o aluno’’, o principal motivo pelo qual se encontra, todos dias, na sua presença. Sem um, não existirá o outro; sem frentista, não haverá motorista; e sem aluno, não existirá professor, muito menos escola.
O professor é o frentista. E hoje, em plena ocorrência da pandemia, como pode existir um, se o outro está distante?, pois não há como pretender realizar o respeitável ofício de frentista à distância! Na educação, na verdadeira educação entre professor e aluno, o impraticável (para alguns) se torna realidade, pois os dois imediatamente interessados – um porque conseguiu prender, e consegue manter retido e, o outro, porque gostou de ser aprisionado, e pretende manter-se cativo – conseguem manter-se necessários. O mágico frentista-professor, ultrapassando as paredes de pedra do castelo mal-assombrado pelas ondas magnéticas da internet, mantém a alegria reinante na sala de aula virtual e os barulhos da aprendizagem, mesmo com sua voz à distância. E como estarão, então, os prédios abandonados da escola, aquela proliferação das teias, o gemido das portas destravadas? Isto é hardware, é irrelevante agora, e isso se resolve mais tarde … porque o importante mesmo, foi que, antes da pandemia, os programas (desejos) já tinham sido instalados no software dos alunos, quando hoje e de longe, e por ainda mais algum pouco tempo à frente, ainda será possível alimentar o desejo dos aprendizes. Portanto, mutuamente encantados e seduzidos, o professor e aluno, e o aluno e o professor, a magia do software acontece!
Concluímos, pois, esta argumentação, através da proposta de um singelo exercício visando comparar as dignas profissões, a do professor e a de um frentista, de autoria de Benjamin Franklin. Não seriam, porventura, idênticas? Por acaso, o professor não é o frentista da escola?
Tu me dizes, eu espero.
Tu me ensinas, eu lembro.
Tu me envolves, eu aprendo.
Luiz Pfluck – professor e diretor
(*) Comenius, João Amós. Didática Magna. São Paulo: Martins Fontes, 1997; pág. 85 a 87.
Anônimo
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