Daqui, donde escrevemos, e estamos em Alvorada, e que é uma cidade da periferia da capital gaúcha Porto Alegre, trazemos uma ideia que faz tempo tilintava na cabeça. O tempo promovido por esta pandemia oportunizou-nos escrever algumas linhas sobre este assunto, quando então, destarte, resolvemos retirar do pensamento e aprisionar nos limites deste texto, para a apreciação e crítica públicas. Vamos lá, então.
A nossa cidade, já desde antes de sua constituição político-administrativa em 1965 e quando lá se chamava Passo do Feijó, sempre tinha abastecido as demandas do seu grande e rico município vizinho, entregando produtos para o consumo alimentar (leite, carne, hortifrutigranjeiros), quando – e especialmente a partir dos anos 70-80, decorrente da expulsão do homem do campo pela mecanização da lavoura, o que lhe promoveu o inchaço populacional descontrolado, tendo hoje muito mais do que 200.000 habitantes – começou a exportar a mão-de-obra, contudo não qualificada, tanto para a capital, quanto para as cidades limítrofes de Cachoeirinha, Gravataí e Canoas. Depois de 55 anos do nascimento do município, a condição de periferia infelizmente se consolidou, muito diferente da maioria das cidades que também receberam o êxodo rural e, podemos dizer, sem pretender minimizar ou ridicularizar quem quer que seja, mesmo que também nos enraizamos por aqui, que somos um município pobre, apesar da potência econômica estar ali, logo ao lado, da grande Porto Alegre, e muito próximo do centro logístico rodohidroaeroviário da região metropolitana, o mais importante do Estado.
Esta circunstância pode-se dizer surreal, pois temos uma grande senzala moderna, que dorme e convive próximo do grande poder, uma favela encravada do lado de uma linda cidade, um gueto, com grande dificuldade de se abrir, e de se misturar e, neste meio também agora, estamos a escrever estas linhas. E, de fato, conhecemos muitas pessoas que ainda desconhecem a Praça da Matriz, no centro da capital, sequer conhecem o trajeto Alvorada-free way-centro de Porto Alegre; de um diretor de uma escola pública da periferia ouvimos que as pessoas nascem, vivem e morrem naquele bairro, mesmo que de longe vejam as muitas torres de Porto Alegre, algo muito semelhante aos moradores das favelas do Rio de Janeiro que, dos morros, veem o maravilhoso mar, mas sem poder pisar nas areias de suas praias, muito menos molhar os seus pés.
A periferia ou o subúrbio, notadamente, não é rica, nem menos detém o poder, uma constatação tão clara como a luz do dia. Esta conclusão, e novamente sem pretender desmerecê-la, apenas esclarece as suas condições para os argumentos deste artigo. Mesmo e apesar da disparidade de forças com a Capital, a vida continua, e deve continuar para multidão de pessoas que vive no município, visto que se deixar de oferecer os seus préstimos, morrerá de fome (a classe média e abastada, se permanecer parada por mais tempo, tem recursos para sair deste bico de sinuca). Com a apresentação desta (um pouco demorada) introdução, agora chegamos ao cerne do assunto que pretendemos analisar: com tantos desafios a enfrentar todos os dias, como é, então, que o pobre e vive e sobrevive?
Entendemos que para viver e sobreviver no meio de tanta adversidade, o pobre ou aquele que vive na periferia das grandes cidades, deve observar questões muito importantes, e que entendemos em estar preparado para realizar duas desafiadoras ações, se contentar com uma dura realidade, além de saber manter uma qualidade especialíssima. Vamos então às quatro.
Antes de adentrar no assunto, se faz necessário esclarecer um outro aspecto. Na verdade, e segundo os argumentos destas linhas, existem duas categorias de pobres: o pobre da categoria Bolsa-Familia e o pobre da esperança. Do primeiro caso, daquele que recebe recursos federais, que recebe doações das enchentes, de roupas das campanhas anuais de inverno, das sopas quentinhas distribuídas por voluntários, não nos debruçaremos neste espaço. Falaremos daqueles outros pobres e que, mesmo enfrentando as duras condições do meio onde moram, lutam na maioria das vezes sozinhos ou com ajuda de outros para, no futuro, conseguirem ter ao menos a sua casa própria com talvez um carro na garagem, e possivelmente as condições de obterem uma mínima aposentadoria ou renda.
Iniciando a deslindar o parágrafo anterior ao deste acima, dizemos que a primeira das grandes ações, portanto, dos pobres da categoria deste artigo, é saber trabalhar muito, e duramente. E este trabalho inicia muito cedo, ao acordar cedo, 04h, 05h da madrugada, ‘’pegar’’ o ônibus, ficar sacolejando 01 hora dentro dele, no mínimo, para chegar ao serviço e lá, já cansado, iniciar a trabalhar as 08 horas diárias. Depois disto, ao final da jornada, pegar novamente o ônibus e, outra vez lotado, imprensado, amassado, apalpado, e impregnado de todos os cheiros e vírus circulantes daquela massa incógnita de pessoas no apertado espaço de um coletivo de janelas pouco abertas, viajará por mais uma hora de retorno, para chegar em casa, organizá-la, fazer a janta e talvez o almoço do dia seguinte, para si, e quem sabe para seus filhos. E quem não vai ou retorna de ônibus, podendo ir de carro próprio, a extenuada jornada de dirigir num trânsito de arranca-e-pára no horário do pico, também não é nada confortável. Uma vida dura, estressante, quase que sem sentido.
Antes falamos que o nosso ‘’pobre da esperança’’ e, para ter esperança, deve se contentar com uma dura realidade. Além do trabalho fastioso e muitas vezes monótono onde labora, e mesmo estando seriamente compenetrado nesta ação, porque se perder o emprego, onde achará outro?, precisa se contentar em ganhar pouco. Porque não teve condições de se aperfeiçoar, sequer estudar em boas escolas quando criança e adolescente, o serviço que realiza demanda pouca prática ou pouco conhecimento, podendo outro qualquer realiza-lo, o que lhe avilta substancialmente o preço do valor da mão-de-obra do que realiza. Que sina!
E para viver e sobreviver na periferia, mais uma outra ação se obrigar a realizar para que mantenha ainda viva a esperança por dias melhores. Veja que, e sabendo já ganhar pouco e trabalhando muito, vindo cansado todos os dias para casa e sem condições de conseguir realizar aquela poupança desejada, percebendo também do pouco de tempo para outras atenções, ainda se força a realizar mais uma ação: realizar parcerias com àqueles a sua volta. O termo ‘’parceria’’ para ele soa meio esquisito; para ele, para o pobre da esperança, a palavra mais acertada, e compreensível para a sua realidade, é ‘’mutirão’’. Sim, deve realizar mutirão junto de muitos outros para levantar as paredes e o telhado da casa do vizinho no final de semana, mutirão de noite para a colocação do piso bruto, uma ação sequer em benefício próprio. Esta ação realizada com sacrifício, possibilitará num breve futuro – quando necessitar demolir as paredes de sua atual casa para, e mesmo da confusão que lhe acarretará, e do danado pó da sujeira da construção, e com a intimidade do lar exposta aos vizinhos – poder (com apoio daquelas pessoas que ajudou) concretar a fundação de sua futura habitação, depois levantar as paredes com tijolos brutos e instalar um telhado sem forro e com fiação aparente, numa habitação muito aquém de uma básica confortabilidade.
E, por último, e como dissemos mais acima, o pobre da esperança deverá manter uma qualidade especial no meio onde se encontra. Esta qualidade, e que tem um íntimo relacionamento com o dinheiro, se sustenta observando o seguinte. Perceba que, onde reside, dinheiro não existe, ou é muito escasso, quando neste caso se torna caro. Mas uma moeda logicamente deve haver, porque negócios e transações são realizados, como aquelas compras no supermercado, na loja da esquina que vende materiais de construção e de ferragem, da necessidade de comprar roupas baratas e usadas, etc. Por isso, o nome da moeda que é circulante naquele meio, e de maior valor daquela sonante, tilintante, tem por nome de credibilidade, sendo melhor compreendido por ‘’fio de bigode’’ e que significa fiabilidade, confiança, certeza, insuspeição, crédito, e crédito bem sabemos significa dinheiro. No fio do bigode se constroem as relações, se levantam as paredes de uma casa, se faz o caderninho na mercearia, se pode ‘’pendurar’’ as contas para serem pagas somente no final do mês.
Apresentados estes argumentos, entendemos então que, para viver e sobreviver, o pobre da esperança precisa trabalhar muito, se contentar em ganhar pouco, fazer mutirão ajudando o próximo e manter tenazmente o ‘’fio de bigode’’. Todavia, ao estarmos na metade da construção deste texto, nos apercebemos de algo interessante: será que todo aquele que estiver lendo este texto não necessita trabalhar muito, e ganhar uma remuneração aquém do que se merece receber? E quantas vezes teve de ajudar pessoas, bem como quando quantas foi auxiliado? Talvez não esteja parelho com o pobre da esperança? A bem da verdade, quanto do melhor do pobre da esperança se encontra dentro de si?
À guiza de conclusão, e porque todo o texto deve ter uma introdução, um desenvolvimento e uma conclusão, à qual delas a que chegamos então? Concluímos, pois, a partir dos argumentos e razões apresentados neste texto, que todos os que leem este conteúdo são pobres, com uma importante diferença: ao invés de pobres da esperança, como ‘’guerreiros da esperança’’ (porque, ao contrário, se pobre for, e nada tem a oferecer em troca, Bolsa-Família então será!). Sim, verdadeiros soldados que trabalham arduamente, tendo por elevado objetivo a melhoria das condições de si e daqueles que lhe são caros, bem como sempre pensando na felicidade das gerações futuras. E na sequência deste raciocínio, e agora já arrematando para o final, e porque não poderia ser diferente, também estão contidos como os heróis desta guerra todos os milhares de precursores, pois se agora os atuais guerreiros se encontram vivos e lutando, foi porque antes em seu favor, foram derramados muito suor e lágrimas, quiçá sangue, pelos pioneiros.
Portanto, nobres pelejadores, continuem sempre nesta luta, sigam sempre em frente, e de cabeças erguidas, vivendo e sobrevivendo …
Luiz Pfluck – professor e diretor
Anônimo
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