1º Ato
O professor é o cozinheiro (*1). E lá está o professor, ‘’cedito’’ da manhã, entrando na cozinha e já pensando o almoço do dia. Vai direto ao fogão, esquenta a água (e parece que em todo o fogão tem de existir uma chaleira, mesmo que de enfeite, de argila), porque um café pede para início dos trabalhos. Coador, duas colheres cheias de café para um café forte, e água quente escorrendo. Hum! Que cheirinho bom! Pega uma xícara, adiciona e mistura o açúcar, e senta. E sorve. E vai pensando, pensando em como preparar o almoço do dia. Os pensamentos vão e vem no olhar dentro daquele vaporzinho que sobe da xícara quente … E logo decide o prato do dia: feijão e os acompanhamentos, arroz, couve, salada verde, e suco de limão. Na cozinha, alma da casa e, na volta dela, tudo acontece; é a sua sala de aula, o centro da escola.
Se levanta então, vai ao freezer, escolhe orelha e costelinha de porco defumadas, retira da geladeira o pedaço de osso com tutano e cartilagem, couve e alface. Vai na despensa e, preferindo o feijão vermelho, já o leva à panela com água quente, para as necessárias reações químicas do grão, evitando assim os futuros retorcimentos intestinais e os indesejáveis gases fugidios nos comensais. Ferve também, tudo junto em outra panelinha, a orelha, a costelinha e osso com carne, para retirar aquela nódoa tão característica. A couve, já limpa, agora é cortada picadinha e na água colocada, uma banheira repousante em preparação ao vinagre e sal que logo lhe serão somados. Enquanto isto, em outro lugar, a realidade é muito diferente: o feijão, agora na fervura, sofre uma danada crise dentro da panela de pressão, quando que, na metade do seu cozimento, recebe as três carnes, quando lá, tudo lhes é dizimado, mesmos as mais tenazes resistências. Quase pronto, aquela cebola e alho cozidos ao óleo, sal, folha de orégano lhe são incluídas, quando então vai à boca uma colher para a prova do sabor. E quase ao final, enquanto acontece a última fervura da quase concluída feijoada, tempera a alface, levando também à mesa, o arroz, uma jarra de suco de limão, a couve agora temperada, a toalha, pratos e talheres. Está servido o almoço, quando então chama todos à mesa para se sentarem, para a oração de agradecimento. Levanta-se daí, da ponta da mesa, e pede os pratos para os servirem. Um a um lhe são alcançados. Todo o planejamento e preparação aconteceu. A aula agora, vai começar.
Não, a aula ainda não vai começar.
A responsabilidade é grande, pois chegado ao meio-dia, e todos à mesa, como deixar de apresentar o alimento esperado? É, portanto, um desafio diário a vencer já muito cedo da manhã, de superar-se na apresentação do prato diário, de até encantar-se com o que estará sendo oferecido, para satisfazer aqueles todos que consumirão a sua obra, com bons sabores e na plenitude do apetite, e para que também retornem outro dia e, preferentemente, novamente esfomeados. Poderia ser o ato de cozinhar, comparado ao de ensinar e aprender: com aquele desejo especial de estar em sala de aula, e motivado para dividir o conteúdo do qual está plenamente envolvido, vem o professor apresentar-se a seus alunos. A sua aula é um sabor especial que derrama nos alunos, cujos aprendizes recebem com um grande apetite, e o gosto dizem que é bom, pois é chegado ao meio-dia da aprendizagem.
No servir, se concentra toda a ação externa do cozinheiro. Muito diferente de preparar, cozinhar, tirar, lavar e guardar, pois são demoradas, silenciosas e reservadas ao cozinheiro e por isso mesmo, sem a presença da crítica ou de outra qualquer contrariedade. Na presença daqueles que estarão sendo alimentados, pois virão todos ao mesmo tempo e estarão num mesmo local, e se alimentarão animadamente no transcorrer de um quarto de hora ou um pouco mais, é que se aflorarão uma série de situações, algumas delas incontroláveis, motivo pelo qual tudo o que acontece antes pode repercutir na sala de refeições.
2º Ato
Concorrendo com uma série das lides domésticas, a mãe, agora professora-cozinheira, compreende que não é tanto a quantidade do que preparará, mas sim observar as duas situações mais difíceis de se controlar na cozinha, o tempo e calor. Sim, tempo e calor, porque cada preparado necessita de um período de cozimento e determinada aplicação de energia, sem que o seu resultado esteja aquém ou além do sabor esperado, cru, malcozido ou queimado, e quem não queimou um feijão! O sabor exato àquele que cozinha e porque necessita estar muito bom, tem de então passar pela prova da permanente atenção, sempre vigilância, parece que velando o futuro prato, no controlar dos minutos e da intensidade da chama. A cozinha não é sala de aula, mas também pode ser, porque somente acontece a aprendizagem quando se administra o tempo em oferecer o conteúdo, esperar ser digerido, para depois e, algum tempo mais tarde, então, entrar na corrente sanguínea. Deixará de haver fogo, fogão, botijão de gás, é verdade, sendo substituído pela energia (e haja energia) do professor. Por outro, saber suportar o estresse da ‘’panela da pressão’’ da sala de aula, quando se deve dobrar algumas obstinadas resistências, se constituindo um grande caldeirão consumidor do combustível do professor é um dos tantos desafios de sua missão. E no final do dia, e quem já teve a experiência de sala de aula, pode confirmar: as forças já lhe faltam, sugadas que foram pelos alunos.
Tempo e energia agora na sala de aula, a sala de refeição, também devem ser aplicados ao oferecer o prato principal, com uma informação importante: deve ser um alimento balanceado para que cada um aprenda, pois sabe-se bem que não existe aprendizagem coletiva. Para alguns, e sabendo de sua sensibilidade, um suco coado do feijão na peneirinha e, para outros, e porque podem melhor digerir a gordura, aquela saborosa costelinha sendo oferecida diretamente dentro de prato, evitando discussões na disputa durante a mesa. Também poderá haver aqueles que não gostem de espinafre e de uma conserva de rabanete, alimentos importantes, mas que podem ser substituídos (quem sabe) por um ovo fritado na chapa. Que ciência, essa aí, de saber ser professor!
O professor é o cozinheiro. A sala de aula não é a cozinha, porque pode ser um lugar violento, pois o cozinheiro se queima, se esfola, se fere com gelo e, acima de tudo, se corta. O ambiente é pouco aprazível às conversações, sendo que os barulhos de afiação de facas, utensílios dispersos na bancada, chiadeira de alimentos cozinhados, passeio de cheiros e olfatos, piso molhado, panelas para serem lavadas, alguma tensão e a compenetração do cozinheiro constituem a pintura do quadro. A preparação para a aula, em seu quarto, é solitária, desafiadora. Anos a fio estudando, redigindo, noites em claro até chegar ao diploma. Mais tarde, já na preparação da aula do dia seguinte, está a meditar, sofrendo, roteirizando o cronograma, selecionando o conteúdo, as técnicas, e separado os recursos.
Pois é, a cozinha não é sala de aula, mas também pode ser. A energia que existe, e emanada pelo professor e de tantos de seus alunos, é considerável. E onde há energia, sabe-se conviver simultaneamente com os seus perigos, choques elétricos, sons de tensão enervante e, para os olhos, aquelas muitas placas avisando do constante perigo. Sendo que o distanciamento entre as energias borbulhantes é diminuto em vista da exiguidade do espaço, bem como pela circulação das tensões ambulantes, o ambiente em permanente tensionamento entra em ebulição resultando frequentemente em faíscas, sonidos alterados e expressões além de uma normalidade aceitável. Aquele que pretende ser cozinheiro, considere, pois, estas palavras. Trabalhar na cozinha exige um perfil de combate permanente ao stress, tanto para atingir metas de resultados, quanto para cumprir prazos. A atividade não é monótona, exige dedicação, e porque segundo vaticinava Herry Truman, cuja citação também encontramos repetida em Paulo Francis, ‘’se você não consegue suportar o calor, saia da cozinha’’.
Daí, na construção e elaboração do feijão, vem aqueles desavisados e, querendo ajudar ou mesmo atrapalhar, pegam uma colher e de dentro da panela, tiram a prova, ‘’Ah, tá faltando sal’’, ‘’esse feijão está muito aguado’’ e por aí vai. Uma colherada amorosa se permite dar a cozinheira no seu esposo, mas agora aceitar pitacos de estranhos ou de qualquer um, que assim, vão entrando na cozinha, metendo o bedelho, daí já vem à lembrança de pegar o rolo de madeira. A sala de aula é o templo sagrado do professor, assim como do cozinheiro. O preparado é seu, apesar das orientações da sua coordenação, ou mesmo da concorrência dos seus colegas. Fechada a porta e na presença dos alunos, sabe da imensa responsabilidade de emprestar sabor ao conteúdo, consciência que lhe martiriza. Agora, que outros ainda venham a atazanar a vida na preparação do seu prato, isto não vai acontecer, porque sabe que ‘’muitos cozinheiros estragam o caldo‘’.
E tem dias, que tudo foi planejado com antecedência, o conteúdo é maravilhoso, as condições são propícias para uma aula de campo, quando daí chove: a aula então se obriga a ser transferida para dentro das quatro paredes. Bah! Ou ainda, iniciando pelo gás que faltou no início da fervura do feijão, o caso imediatamente instabiliza o cozinheiro e já amargando aquela visão das reclamações à mesa, descuida de um prato à mão, que cai estilhaçado. O dia não está bom, deu tudo errado. E como não há alternativa diferente, já que o almoço deve estar impreterivelmente servido ao meio-dia, resolver como? Por isso que se diz que o professor é o cozinheiro, e não deixará aqueles que deve alimentar sem refeição: desfalcado de algumas condições, ultrapassará o desafio de oferecer um prato, bem como saber ouvir em silêncio talvez o que não mereça.
Nestes últimos tempos, e porque talvez deixem de haver assuntos interessantes, porque os atuais já não batem a marca desejada da audiência, ou somente alguns poucos pontos no ibope, agora inventaram o cozinheiro à distância, tipo aquele master chef ou mestre do sabor. Só pode ser brincadeira! Cozinheiro à distância! Aquele som da cebola sendo fritada e a imagem dela se retorcendo numa transparente banha de porco, até pode ser reproduzido, mas o gostoso cheirinho que vem ao nariz, por qual canal se pode ser enviado? Sim, cozinheiro e professor, uma das primeiras funções da humanidade, e ainda uma das principais, gradualmente sendo desfiguradas do primeiro papel, daquele de presencialmente viver e conviver entre cozinha e comensais, sala de aula e alunos. Tempos transmudados, estranhos, que somente dentro de alguns anos saberemos o resultado. Mas a história não falhará: o que não é verdadeiro, não perdurará.
Algum tempo atrás, a congregação dos que se apresentavam à mesa se concentravam proximamente do calor e do fogão. Hoje, organiza-se ao entorno das linhas duras da geladeira, do barulho do micro-ondas, das paredes claras e higiênicas do azulejo, com cheiros desviados para coifas, dos sapatos retirados à entrada da casa, e ninguém se acomoda muito tempo para contar histórias ou conversar longamente na cozinha. A cozinha, então, se modernizou. E nesta realidade, como ela se encontraria? Percebe-se que ela tenta copiar a sala de aula tradicional, como para superá-la e estar à altura dos novos desafios – até inventaram a sala de aula virtual -, mas ainda percebe que se apresenta com insucesso. A verdadeira cozinha não há como ser à distância, não há.
No preparo dos alimentos, são muitas outras as preocupações do cozinheiro, para que seu trabalho deixe ser em vão. Permita-se perceber, e para compreender a similaridade com a função docente, algumas de suas questões: será que outros cheiros não lhes fizeram apetecer-se de um lanche completo antes do almoço (quais as muitas atenções que disputam a atenção do aluno); algum novo alimento a ser introduzido, poderá embrulhar o estômago ou provocar diarreia (novos conhecimentos podem causar polêmicas em sala de sala); qual a quantidade adequada para estarem alimentados, nem que comam demais ou de menos (qual é a conteúdo necessário para aprender naquele dia); qual é o pequeno doce a ser oferecido ao final da refeição, para concluí-lo (qual é o desafio a ser apresentado para a próxima aula, e desafio é algo que todos querem participar, antes de terminá-la); como deixar que a feijoada daquele dia deixe de ser formalmente consumida pela falta daquele gostinho de pimenta no feijão, uma contrariedade muda do comensal, na observação descontente do cozinheiro (evitar o jogo de faz-de-conta, um fingindo ensinar e o outro aprender); fulano de tal, e porque está ruim do estômago, vai comer apenas uma canjinha (cada aluno é diferente, e necessita a atenção individual do professor); uma pergunta que não quer calar: se todo o enorme tempo despendido, o esforço, a preocupação, e somando-se ainda todas as muitas outras condições, resulta em apenas alguns tipos de pratos por sobre uma mesa de uns poucos metros quadrados, quais seriam, então, as ações que o cozinheiro deve realizar para que o aluno reconheça que aquilo que ali se oferece, sentado, e na frente de seus olhos, seja importante para a sua vida, e que tudo o que recebe, mesmo algumas vezes uma papinha de arroz, seja um verdadeiro banquete?
Incendiar o consumo, promover a alegria, incentivar as conversações, estimular a socialização e excitar a imaginação poderiam ser alguns dos resultados de um bom almoço, ou talvez não seriam do ambiente de uma sala de aula? Perceba aí a similaridade dos ofícios, um atuando como criador de sensações, e o outro fomentador de ideias, ambos cutucando muito seriamente com as emoções de alunos-comensais. Mas existem pessoas, atuando na mesma área e nas mesmas posições, que oferecem resultados diferentes, para gostos também diferentes, ou nem de tão gostosos assim. Alimentando as necessidades das pessoas (e necessidade é muito diferente de desejo, cujo professor e cozinheiro pretendem apetecer naqueles que lhes aguardam), se apresentam aquelas comidas industrializadas, insossas, sem falar daquela comida de quartel onde sequer sabe-se lá o que colocam dentro. E o aluno sempre está com fome e, para alimentá-lo, basta esquentar um macarrão instantâneo, que se aquieta. Contudo, neste artigo, falamos da arte de cozinhar, da arte de lecionar, da obra de arte criada todos os dias, duzentos dias por ano, onde espaço e tempo existe para uma produção somente muito especial, diferente daquelas em série, e para os esforços de paz.
3º ato
Chega então, o momento de servir o almoço. A toalha, os pratos, talheres, as travessas para debaixo da panela quente de feijão, cadeiras para sentar e para se escorar, e um clima adequado, distenso, na preparação à degustação dos alimentos. A alegria paira no ar, a movimentação, o agito, os comentários, a falação, a preocupação com as mãos lavadas, aquele conhecido ambiente contagiante de vésperas de um momento mágico, tudo isto faz parte do cardápio. Come-se com os olhos, pelos ouvidos, com as mãos, com o corpo todo. A mesa, então, a pausa necessária para a suspensão dos desafios do dia e, o apetite, então, doma as atenções. Se a fome consegue ao meio-dia tanta atenção e promove a calma, e estando este mundo um tanto desajeitado, quem sabe que não seja de valor o ditado ‘’Me diga onde comes, e direi quem tu és’’.
O professor é o cozinheiro. E daí ele diz: ‘’Prova aí! O feijão está bom!’’ e o aluno ouve, e leva a boca, e gosta. Ao gostar, também foi porque quem primeiro gostou foi o próprio autor bem antes, pelo nariz apurado, a visão aguçada, as mãos resistentes e muitos anos diante de um fogão quente. Ser cozinheiro é muitas vezes não ter fome, porque os seus gostos lhe foram saciados antes, nas provas, nos cheiros cobertos de sabores que lhe satisfazem a fome de comer e, sabendo estar no ponto, mesmo sem comer, vaticina ‘’está bom!’’ Este texto, por exemplo, se deixar de ser adequado para quem o escreve, também não será para quem o lê. Bem disse Émerson, ‘’Aceita, pois, a máxima de Sidney: ‘Olha o teu coração, e escreve’. Apenas a palavra que haveis encontrado tentando satisfazer a vossa própria curiosidade, é digna de ser publicada. O escritor que busca seus temas não com o coração, mas sim com os ouvidos, deveria saber que perdeu tanto quanto pensa ter ganho’’ (*2).
Então, à mesa, os comentários dos alimentos apresentados são as primeiras manifestações daquele encontro, e publicamente manifestas sobre os cheiros e os gostos. Agora, por outro lado, nos tempos modernos, as preferências da mesa tomam outra dimensão, quando vem a ser compartilhadas, ultrapassando as limitações da sala de aula, podendo ser filmados e gravados, uma ante-sala de um reality. Imagine o escândalo em oferecer quiabo, uma iguaria baba e gosmenta! Preparando os alimentos no silêncio típico da cozinha, entre chiados e sinais metálicos do encontro das panelas e das suas imperceptíveis murmurações, o professor-cozinheiro agora se encontra na presença dos convivas, quando tudo o que apresenta é exposto e do prato servido, vem os ruidosos comentários – eles deveriam consumir em silêncio, pensa o professor, para que absorvessem melhor! Mas o que fazer o quê? Impedir o barulho como? quando se vê que na alegria os gostos são comentados, as essências cheiradas, as texturas mordiscadas dentro daquela balbúrdia que é a sala de aula. Combinar, pois, numa mesma e espaçosa sala os interesses, os gostos, os sabores de todos os envolvidos, é a arte típica da cozinha-educação, e ela se percebe no burburinho da satisfação dos alimentos à mesa apresentados. E não é por acaso que quando se ouve um burburinho, em qualquer outro lugar, que é quase que sempre lá se encontram professores, pois não há como dissociá-los desta tradicional e barulhada comunicação que existe ao ato de ensinar.
Contudo, porque é muito desagradável ouvir ‘’o feijão está ruim!”, vendo também aquela sobra no prato ou ainda sendo consumido em silêncio, à contragosto, e todo aquele que preparou um cozinhado percebe isso (lá em casa, a verdade sempre se diz mais abertamente), como seria ultrapassar a mesma situação em sala de aula? Dissimular, discordar ou ainda tergiversar poderão ser as respostas possíveis daquele que não é cozinheiro, porque enfrentar de quem fala, uma verdade, dói. Contudo, quem se esmera em oferecer uma boa aula-feijoada, considerando-se portanto como um mestre cozinheiro, terá sempre consigo algo que lhe mitiga a dor, quando daí, para compreender o reclamante, concorda com o mesmo, e se cala. Sabe que, mais do que vai à boca, uma comida que os reclamantes deixam de reconhecer como saudável, é o amor. Sim, um prato de comida está carregado de amor, e com amor se suporta toda a crítica da reclamação de fome ou uma contrafeita de gosto estranho. Amor ao realizar, e ao suportar; amor por oferecer, e no rejeitar; amor ao conviver com sensações de uma gangorra ‘’adrenalinada’’.
Por outro, e para que o sabor aconteça, os dois devem estar apaixonados, um pelo que oferece, e outro pelo que recebe. Mas como se apaixonará se não sabe sobre o amor? A cozinha sempre haverá, e sempre será procurada, ela já estava lá quando sequer os famintos existiam. Assim, o cozinheiro é anterior e, portanto, mais cabe à ele, o sabor-amor para àquele a qual será ofertado. O professor, na cozinha do ensino, é a causa do amor surgido no aluno. Por isso, saber cozinhar, somente pode ser um caso de paixão em permanente colóquio, porque se um não quer, dois não fazem.
Há uma diferença que entre aquele que cozinha e aquele que é professor, e isto deve ser esclarecido, apesar que ambos se ofereçam integralmente em seu mister, através do que entregam: um de gostos e cheiros sentidos, e o outro de gostos e cheiros percebidos, contudo ambos tendo os imensos desafios em apresentar comidas palatáveis aos seus consumidores.
A ferramenta do professor é a sua boca, a do cozinheiro, as suas mãos; o professor destrincha o conhecimento, assim como o cozinheiro a carne daquele osso; a mesa posta com seus talheres, pratos, travessas e panelas, é a mesa do professor-cozinheiro; todos os cheiros produzidos pela cozinha constituem o encantamento do professor, e como é prazeroso aspirá-lo, inspirá-lo! O gosto do maravilhoso feijão só pode ser aquele mágico conteúdo, que seduz e arrebata o aluno. Talvez seria melhor até ensinar dentro das cozinhas, pois mãos e bocas se entendem e saciam.
O professor é o cozinheiro. Para o oficio de cozinheiro – e porque ele é completo, de manhã até guardar as louças sujas, assim como tendo a missão em oferecer uma apetitosa iguaria, bem como em realizar a diariamente a correta mordomia daquela cozinha – qual deveria ser mais uma outra importante atenção diária? Na mesa, pois, se apresentam os comensais. O primeiro vem à mesa sem pressa e comedido, senta-se, olha para os lados, olha para frente e aguarda o sinal-início de pegar os talheres. Daí, no trespasse controlado da faca entre o garfo, corta a comida, levando-a em seguida corretamente ao garfo e, este, sem deixar cair nada, segue em direção à boca. Por que veio se alimentar, já se apresenta praticamente completo: veio para o objetivo para o qual veio. E daí, satisfeito, respeitosamente, empurra o prato para frente, e se atira para trás, e observa o cenário. Está atendido, sabendo também que satisfez quem cozinhou. O outro tipo, em silêncio, sentado no cantinho, não querendo ser incomodado, porque no meio da mesa é um movimento só, olha para o prato e estaticamente recebe os alimentos. Apesar de estar com fome, come em silêncio, e taciturnamente ‘’me deixa quieto!’’ Mais outro se destaca. Diz o cozinheiro: “Come, meu filho, tu comeu tão pouquinho!”, “Come, que vai esfriar a comida!”, “Desliga o celular!”, “Não incomoda o teu irmão!”, “Senta pra frente!”, ‘’Come a salada!’’. Ah, sim, e tem aquele outro, muito falante, comunicante, a risada se sobressai de todos, comenta os sabores, reclama alto do gosto, chama o cozinheiro de gostoso, se levanta, e tira-o para dançar sem outro motivo maior. E porque é paparicado, as atenções do cozinheiro são todas dele. Quando lá ele se encontra, ninguém fica quieto, é uma casa cheia. Afinal de contas, qual a importante atenção que o cozinheiro deveria atentar?
A preparação, e que foi a causa – um múltiplo somatório de ações anteriores, também na escolha e preparo de alimentos brutos, do adicionar de condimentos e dos resultados do calor do fogo, e que envolveu muito tempo -, agora, dentro de alguns minutos, será consumida em pouco tempo. Qual a razão? É tipo aquela corrida de São Silvestre, de 15 km, suada, sofrida, desgastante, trabalhosa e que se conclui vencedora nos últimos momentos dos aproximadamente 43 minutos. Em apenas alguns segundos antes, o vencedor, e sempre olhando para trás, pode se dar o gozo da vitória da sua vitória, até chegar a cortar a fita! Tanto trabalho, tanto esforço para tão reduzido tempo de satisfação! E tem mais: o professor-cozinheiro não é corredor, e todo o resultado do seu esforço deixa-o de querer para si, mas para perceber em outro, no seu aluno. A preocupação do professor, todo o seu esforço, foi a véspera da refeição, sendo, portanto, a causa; agora, a consequência é outra, a sua satisfação são outros a prová-la. Veja que semelhante desprendimento também se encontra na liderança: ‘’Nós, pelo menos, começamos a descobrir o sentido da vida humana quando plantamos árvores frondosas debaixo das quais sabemos muito bem que nunca sentaremos… Por que o valor duradouro de um líder é medido pela sua sucessão’’ (*3)
E terminou o almoço. E a aula terminou.
Agora, alimentados, e saciados da sede, pedem permissão, e se levantam da mesa, e saem. A maioria sai falando, conversando com os colegas (porque quem se alimenta, quer escapar de lavar a louça!), apenas poucos se dirigem ao cozinheiro. Este é um momento agradável para o cozinheiro, onde acontece o retorno do que fora oferecido, pelos comentários dos pratos oferecidos, e algumas vezes, no externar de agradecimentos. Importar-se com ele, ao final da refeição, talvez possa ser o mais importante do que foi elaborado.
4º e último ato
Agora, sozinho novamente, encontra-se o cozinheiro, observando pratos, panelas, copos, travessas, alguns com restos de comida, e outros com algumas sobras ainda por sobre a mesa. Permite-se deixar de se sentar, porque a ‘’função’’ ainda não terminou e, concentrando os restos para um recipiente numa pré-limpeza dos utensílios, dá início a desmontagem da mesa. Desloca as sobras em vasilhas menores, recolhe os talheres e coloca-os na pia. Retira panelas e os coloca por sobre o fogão, próximo da pia. Limpa com papel os utensílios de cerâmica utilizados, e coloca os restos no saco de lixo; raspa panelas e joga seu conteúdo também ao lixo; e inicia os serviços de lavar a louça, colocando as peças lavadas no escorregador, cuidando para não quebrar, trincar ou amassar. Terminado, toma uma toalha, seca-os e guarda-os. E, quase ao final, varre o chão, e com um pano molhado de produtos de limpeza, lava o piso da cozinha.
E, finalizada a tarefa, vai direto ao fogão, esquenta a água, porque um café pede para o final dos trabalhos. Hum! Que gostoso! … Terminada a aula, o professor encontra-se focado nas últimas reminiscências, estando sem poder dividir os pensamentos com outros, já que necessita reestabelecer-se do cumprimento da jornada. E o que restou daquele dia?
O trabalho longo e exausto, iniciado cedo da manhã, tinha agora sido concluído, os utensílios guardados, a limpeza realizada e aqueles famintos, agora saciados, se encontram longe da cozinha. Falando com seus botões na lembrança dos acontecimentos do dia, uma lembrança lhe veio à memória, pois tinha escolhido a profissão de cozinheiro e, destarte, fizera a juramento de cumpri-la: alimentar com a qualidade aqueles que se lhe apresentavam. Sim, deixar de saciar quem fosse, poderia ensejar que outros o fizessem em seu lugar, e os seus comensais não mereceriam a substituição.
O que foi que lhe veio ao pensamento, e isto havia escutado em algum tempo atrás, e que lhe impregnou na memória pela importante mensagem, foi que ‘’é difícil para um saco vazio ficar de pé’’ (*4). O seu dever acreditava, tinha sido cumprido para seus alimentados. Contudo, pensamentos sombrios lhe vieram, ao lembrar daqueles que, sem poder estar próximo, serem roubados do que ainda lhes restava, outros sequer de serem alimentados. Sim, se faltar um prato de comida não há como aprender e, se houver fome, não há como ajudar a manter puro o caráter de um homem.
Assim, pois, tanto o professor quanto o cozinheiro, são ensinadores de homens.
Luiz Pfluck – professor e diretor
(*1) O artigo foi também embasado nos livros Estórias de Quem Gosta Ensinar, de Rubem Alves, Pense no Garfo da escritora Bee Wilson e dos comentários das filhas a respeito de sua mãe que, segundo elas, é a melhor cozinheira do mundo
(*2) Emerson, Ralph Waldo. Ensaios. São Paulo: Martin Claret, 2005, pág. 113
(*3) Maxwell, John C. As 21 irrefutáveis leis da liderança. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2007, pág. 286
(*4) Franklin, Benjamin. Autobiografia. São Paulo: Martin Claret, 2005, pág. 116