Erasmo de Rotterdam – um teólogo e filósofo humanista neerlandês, e que viveu entre os anos em 1466 a 1536, portanto em plena Idade Média, através de suas manifestações – denunciava as esquisitices da Igreja, já que apresentava muitas dificuldades ao povo, cujo relatório de algumas delas podem ser encontradas em O Elogio da Loucura. O livro é coberto de sátiras, algumas até hilárias, quando se percebe a hipocrisia e os desmandos do poder em questão, comparando-se a lucidez com a loucura. De poucas páginas e sendo fácil de ser encontrado, ele é também de boa leitura.
Encontramo-nos, hoje, depois de muito progresso da ciência e das boas condições de se viver na comparação com a idade medieval, parece-nos, numa situação semelhante àquela descrita pelo nosso escritor, junto de um estado pré-loucura. Vivemos, desde março de 2020 até a presente data, início de julho, praticamente 05 meses em estado de quase paralisia das ações, aqui no Brasil, do comércio, da indústria, prestação de serviços e do quarto setor, com exceção de setores essenciais, a exemplo do ambiente da saúde, do setor agrícola, energia e alguns outros mais. A estagnação que nos referimos é a pandemia provocada pelo vírus Corona Covid 19, surgido na China em meados de 2019, e que se disseminou no Brasil na época do Carnaval, trazido pelos muitos turistas infectados da Europa. Como a pandemia alterou a rotina da vida de todos os brasileiros, com impedimentos de toda a ordem, a partir da advertência das autoridades para o isolamento das pessoas em seus lares, a fim de evitar o colapso nos hospitais pela alta demanda de doentes, algumas questões um tanto esquisitas começaram a se apresentar.
Permitimo-nos, seguindo um paralelo com reconhecido trabalho de Erasmo, costurar e tecer alguns singelos comentários, tendo por pano de fundo a loucura da nossa pandemia. E o que segue, sem pretender criar juízo de valor (se é bom ou se é ruim), nem menos preconceituar qualquer quem seja, é fazer provocar, questionar, é fazer se mexer na cadeira, podendo-se concordar ou discordar. Podemos até ser xingados, mas vale a pena as provocações, para que consigamos, nestas comparações, recuperar alguma da lucidez perdida. É necessário! Vamos lá!
Talvez você possa ser um daqueles que ainda não conseguiu retornar às suas atividades normais, e mesmo que tenha retornado, o questionamento é o mesmo: os momentos desocupados e de tédio foram ocupados com …? O tão conhecido ‘’fique em casa’’, quebrando aquela dura rotina diária, nos forçou a estar trancados e, tendo as paredes e teto como limitação, nos atiraram às redes sociais, à televisão, aos pacotes televisivos, mesmo que talvez não restava alternativa. Ocupou-nos a mente a pobreza, os fuxicos, celebridades, programas vazios? E caso nos permitíssemos olhar o noticiário, foi-nos possível trocar de canal ou desligar a televisão, observando as notícias escabrosas e tétricas do concurso diário de quem mais anunciava mortos? E com tantas notícias funerárias, talvez possamos estar ou estivemos nos encontrando no limiar de um estado deprimido ou em pré-depressão. É sério?
Máscara no rosto, álcool gel nas mãos, lavar frequentemente as mãos, limpar os pés, trocar a roupa, circular em espaços reduzidos e somente naquele, são características daquele que trabalha em um hospital. Parece-nos que neste período e, em vista desta obrigatoriedade, foram os doentes os soberanos da sociedade, quando aqueles, de boa saúde, em expressivo maior número, são as maiores vítimas, tanto quanto recebiam o vírus indesejável, quanto sofriam as pressões psíquicas do confinamento de casa, e do ar livre. Os livres e os saudáveis presos, que loucura! As mortes por depressão e suicídio decorrentes da impossibilidade de honrar compromissos, e aqueles doentes que deixaram de ir ao hospital por tratamento preventivo, talvez possam ser maiores daqueles dos mortos pela pandemia: a doença mais fora, do que no hospital. Até funerárias faliram pela compra de caixões da ausência de mortos anunciados!
Fique em casa! Não vá para a rua! Tomar sol e ar na praça (e veja que sol é bom para aumentar a Vitamina D!), bem como no local onde se poder respirar o ar livre despoluído de vírus, são atitudes ofensivas ao status quo; alguns até presos foram, imagina! Até inventaram um gesto esquisito, de se cumprimentar pelos cotovelos, isto não é coisa de doido? E na Caixa Federal, adianta ficar na fila, aglomerado, e voltar para casa, levando vírus aos confinados? Já até ouvimos de gente que viu os micróbios da Covid caminharem no encosto dos bancos, que paranóia! O que te move para sair de casa, mesmo em pandemia: não aguentar mais ficar lá dentro? De repente, não foi um teste para controlar-nos? E se foi, como foi fácil! E enquanto que o medo domina, o sol nasce maravilhosamente todos os dias, quentinho, neste gostoso inverno, assim como sempre foi!
Ah, sim, a máscara, é o símbolo maior da pandemia: por acaso, não deveria ser a figura do coronavírus? Pare, olhe, e analise com cuidado: se todos temos o mesmo rosto mascarado, cadê eu? Buçal quem usa é cavalo. Depois da pandemia, usar a máscara até bandido ficará mais humano! Quem deveria usar a máscara, assim como no Japão, não seria somente aquele que está doente? E ao sair sem ela, já sentiu aquele fuzilamento nos seus olhos! E qualquer um, um zezinho, um atendente de um supermercado, quando jamais levantaria os olhos, agora te é autoridade: ‘’Senhor! A máscara!” Em tempos de saúde, sair à rua com o fecho aberto da calça ou uma peça de roupa virada, quando sequer algum vivente nos avisava da gafe, era uma vergonha danada, agora estar sem a máscara é um crime! O bandido agora é quem? Vá para a rua e perceba que, se antes já éramos desconhecidos uns dos outros, senão ficou pior: para a frente, para a direita, para a esquerda, máscaras em movimento. É ainda possível encontrar pessoas? E a boca, a voz de cada um, em plena pandemia, agora restou politicamente partidarizada: quem fala contra é demonizado, que fala a favor também, quem se apagou está de máscara.
Certa vez, Dostoiévski proferiu a enigmática frase: “A beleza salvará o mundo’’ (*1). E Émerson, talvez num dia muito inspirado, conseguiu resumir o melhor entendimento sobre ela, quando escreveu “Onde quer que vá, a beleza leva graça e contentamento, e tudo lhe é permitido. Seu apogeu é a mulher. Dizem os maometanos: ‘’Deus deu à Eva dois terços de toda a beleza’’. Uma bela mulher é poesia em movimento, adestrando seu companheiro selvagem e semeando ternura, esperança e desenvoltura em todos de quem se aproxima’’ (*2). A máscara sucumbiu a mulher. Que objeto mais feio, nossa!
‘’Vocês que fazem parte dessa massa,
Que passa nos projetos, do futuro.
É duro tanto ter que caminhar
E dar muito mais, do que receber.
E ter que demonstrar, sua coragem
A margem do que possa aparecer.
E ver que toda essa, engrenagem
Já sente a ferrugem, lhe comer’’.
Ê, ô, ô, vida de gado
Povo marcado, ê!
Povo feliz!
Zé Ramalho
Luiz Pfluck, professor e diretor
(*1) Wolfe. Gregory. A beleza salvará o mundo: redescobrindo o homem numa era ideológica. Campinas, SP: Vide Editorial, 2015, pág. 19
(*2) Emerson, Ralph Waldo. A conduta da vida. Campinas, SP: Ed. Auster, 2019, pág. 218